Eu não agüento mais tanta mensagem de repúdio á decisão sensata e até mesmo atrasada do STF em legalizar o aborto de anencéfalos. As pessoas tem postado em redes sociais mensagens absurdamente maniqueístas , comopiniões de caráter religioso, criticando a nova legislação, e tratando o tema, que é tão delicado, com um romantismo que beira ao ridículo. Não estamos falando em infanticídio, estamos falando em direito à vida, e não podemos desconsiderar a vida e condição emocional da mãe, como se tratasse de um capricho cruel.
Eu chego a ficar com nojo de tanta hipocrisia, eleitores hipócritas, criam um Estado hipócrita, em que as leis nunca representam o povo que somos, mas sim, o povo que queríamos ser. É obvio que uma mulher deve ter o direito de decidir se quer ou não gestar uma criança fadada ao óbito, em horas, dias, com azar, meses após o nascimento. É óbvio que a mulher deve decidir se vai querer um velório de nove meses ou não. Não acho que todas devem fazer o aborto, não sei se eu faria. Algumas certamente vão escolher levar a gestação até o fim, por altruísmo religioso, ou social, na intenção de doar órgãos para salvar outra vida, ou por qualquer outro motivo íntimo e pessoal. Mas é lícito o direito de escolha. Nenhuma mulher deve ser castigada por estar grávida. Gravidez não é castigo por um ato sexual, e filho não é benção, como adoram dizer por aí. Filho é escolha. Enquanto as pessoas não começarem a pensar assim, não vamos caminhar para uma sociedade mais igualitária e desenvolvida.
Eu acho que essa decisão, ainda é só o começo para se repensar a lei sobre o aborto no Brasil. Devemos pensar que vivemos em um Estado laico, que deve ter sua legislação baseada nos interesses públicos, e não nos dogmas religiosos. As nossas leis que tratam sobre o aborto ainda são, como nós brasileiros, machistas e preconceituosas. Vivemos em uma sociedade que culturalmente delega á mulher a obrigação de levar uma vida de renuncias por amor ao filho. Se a gravidez é indesejada, se foi feita por um ato de irresponsabilidade de duas pessoas, as conseqüências, em geral, são sofridas apenas pela mulher e pela criança. Os homens, a grande maioria deles, se sentem desobrigados de manterem financeira e/ou psicologicamente os frutos dessa irresponsabilidade. A maioria dos homens que enchem a boca pra criticar o aborto, são os mesmos que abandonam seus filhos á própria sorte, delegando a função de educá-los única e exclusivamente á mãe, que por vezes delega essa função à terceiros. Eu sei o que estou dizendo, eu vejo isso todos os dias na periferia onde eu trabalho. Famílias que começam em um repente e que só fazem a acrescentar aos piores indicadores sociais.
Eu sou a favor da legalização ampla do aborto. Não sou a favor do aborto, mas sou a favor de uma lei que garanta proteção e respeito á mulheres que por isso optarem. Ninguém faz aborto por capricho,ninguém engravida planejando passar por um processo tão doloroso física e psicologicamente. Ninguém deixa de fazer aborto por ser proibido, ninguém faria aborto simplesmente pelo fato de ser liberado. É tudo muito mais sério e complexo que isso. É uma hipocrisia imensurável pensar que a lei vai incentivar o aborto. Todo mundo sabe, que quem quer fazer aborto no Brasil, faz. Proibir não coíbe, se fosse assim, não existiriam tantos usuários de droga ilícitas. Proibir apenas beneficia uma minoria que sobrevive da mazela de uma maioria. As clínicas clandestinas e os remédios abortivos, estão aí, ao acesso de quem puder pagar. Em falta de condições financeira para esses recursos, ainda é possível lançar mão da ajuda de “fazedoras de anjos”, que em condições de higiene, técnica e instrumentos precários, fazem “cirurgias” abortivas em suas próprias casas, por uma bagatela. Neste exato momento, dezenas de centenas, talvez dezenas de milhares de mulheres devem estar se sujeitando a alguma “técnica” abortiva. Muitas delas irão morrer, e ser veladas e enterradas como vilãs. Julgadas e punidas pela opinião alheia sem o mínimo de compaixão. O Estado jamais poderá fazer nada por elas. Por que para o Estado, elas são invisíveis. Apenas uma lei de regulamentação do aborto, séria e humanizada, poderia criar meios de quantificar m qualificar o aborto no Brasil. Só essa quantificação e qualificação, levaria a identificação de quem e por que se faz aborto no Brasil, e só assim poderíamos criar meios, políticas públicas eficientes de prevenção.
Eu conheço mulheres que já fizeram aborto, todo mundo deve conhecer. Não conheço nenhuma que se orgulhe disto, nenhuma que deseje fazer de novo. Mulheres que tem profissão, dignidade, fé em Deus, que tem uma capacidade imensa de amar, incapazes de fazer mal a um animal que for. Mulheres como eu,como você, sua mãe, sua esposa, sua irmã, como um monte que encontramos por aí, que não são vilãs, e que não devem e não podem ser tratadas assim. Mulheres que pagam seus impostos e que colaboram para o progresso de um Estado que deveria, pelo menos na teoria, criar leis que as protegessem, e que não as incriminassem, que não as punisse pelo simples fato de serem mulher.