QUANDO ALGUÉM PERGUNTA A UM AUTOR, O QUE ESTE QUIS DIZER, É POR QUE UM DOS DOIS É BURRO.

MARIO QUINTANA

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A escola inclusiva que exclui: Uma reflexão sobre as práticas de “inclusão” nas escolas públicas

Quando era criança, eu era uma aluna brilhante, aprendi a ler (sem soletrar e de forma pontuada) aos seis anos de idade. E aos oito já era elogiada pela minha capacidade de produção e interpretação textual. Apesar disso, era desorganizada, vivia de castigo atrás da porta por causa das minhas crises de riso, e fui considerada por uma professora um problema para a classe, uma vez que era inquieta, impaciente e eloquente além do necessário. Respondia antes dos colegas, terminava a atividade antes de todo mundo, fingia estar passando mal para sair da sala, uma vez que era uma tortura ficar sentada e em silêncio por mais de vinte minutos até que os demais terminassem.
O que as minhas queridas professoras não sabiam é que eu era uma criança hiperativa. Mas naquela época ninguém sabia. Talvez isso até estivesse sendo discutido nas universidades, mas minhas professoras primárias tinham aquela formação técnica conhecida por “normal”.
Acho que normal diz tudo sobre aquela época, porque na escola tudo e todo mundo era normal. Ao final do 1º ano um por um dos alunos sentavam-se ante a diretora e lia um texto, esta era a condição básica para se passar de ano. Não sabe ler, faz de novo, repete o ano. Isso era normal.
O normal era ser normal, não existia políticas de “inclusão”. Não existia autismo, dislexia, hiperatividade, T.D.A. e todas essas doenças da educação moderna.
E pensem o que quiser, hoje sou muito grata por isso. Obrigada abnegadas professorinhas por não me considerarem uma aluna de inclusão.
Se fosse hoje talvez eu não tivesse recebido tantos castigos, minha mãe não teria sido chamada tantas vezes à escola, e provavelmente eu não teria pegado aquela pavorosa recuperação em matemática, na sexta série, durante os jogos da Copa de 1998. Assim eu teria, ao invés de ficar resolvendo aqueles benditos 120 exercícios, assistido todos os jogos da copa, incluída aos meus irmãos na sala.
Mas talvez hoje estaria excluída do mercado de trabalho, da universidade e não teria desenvolvido tantas habilidades intelectuais, senso de compromisso e responsabilidade, de causa e consequência, dentre outras coisas.
É óbvio que esse modelo de educação não era perfeito, pelo menos não para todos. Alunos com transtornos de concentração grave, dislexias, dígrafos e discalculistas eram simplesmente atrasados, e os síndromes de down, as crianças com paralisia cerebral e autistas em nível mais grave, formavam junto a outros “excepcionais” o grupo dos "retardados". E os deficientes físicos eram os aleijados. Os cegos e os surdos eram os coitadinhos.
Mas todos esses quatro grupos tinham um principal fator em comum, todos compartilhavam de uma forma ou de outra, de diferentes níveis de exclusão, tanto escolar quanto social.
Os primeiros tinham duas escolhas, ou se adequavam às rígidas regras da escola ou estavam fora, podiam ser expulsos, transferidos para outras escolas consideradas ruins ou fracas, ou reprovados de forma constante e sequêncial até evadirem.
Já os integrantes dos três outros grupos não existiam para a escola regular. Os “retardados” porque não iriam aprender nada e atrapalharia os colegas com seus sons incontroláveis e irreguláveis, seus movimentos repetitivos e compulsivos e com seus arrombos de agressividade. Os cegos e os surdos eram enviados para institutos especiais, (claro, se a família pudesse pagar, senão pela mensalidade, pela locomoção à raras escolas que geralmente ficavam localizadas em áreas centrais distantes das periferias), os “aleijados” poderiam se matricular e sua permanência era garantida, desde que conseguisse subir as escadas, usar os banheiros, beber água e é claro se localizarem entre as carteiras hegemônicas da sala de aula. Isso tudo, obvio, sozinhos ou com a solidária ajuda de seus coleguinhas, cujas atitudes eram louvadas com frases do tipo “Olha que gracinha, ajudando o amigo aleijado”, ou com a constante presença de suas mães. É obvio que essa criança não iria permanecer nessa escola.
Depois da convenção de Salamanca, a situação caminhou para uma mudança significativa, ainda que de forma lenta, os sistemas de educação começaram a tentar se adequar à obrigatoriedade da oferta e garantia de permanência destas crianças. E claro as Universidades passaram a se dedicar à estudos neurocientíficos e a identificar e classificar, até então, desconhecidos transtornos de aprendizagem.
O problema é que as políticas públicas que foram criadas no Brasil,tanto nos âmbitos municipais quanto estaduais e federais, não correspondem, na prática, com o ideal de inclusão na qual a lei se baseia.
A falta de preparo dos profissionais, somados a falta de investimento público e a ausência de reconhecimento de direitos pela sociedade transformaram as escolas em um ambiente de total exclusão.
A tal inclusão acabou por se fechar em dois fundamentos básicos o da exposição e o da rotulação.
As escolas que antes eram um ambiente cândido e angelical, viu suas portas abertas, escancaradas a crianças que não satisfazem o ideal de infância que se tinham até décadas atrás. A progressão automática e as leis de “inclusão” acabaram por garantir a permanência das crianças que até então eram indesejadas, e a escola deixou de ser "normal".
As professoras não eram mais as normalistas, e os alunos todos, de repente, deixaram de se enquadrar no que era considerado “normal”.
Como consequência imediata de tantas mudanças temos uma escola mergulhada em uma profunda crise de identidade e o maior desespero das professoras se reflete não só na quebra de suas imagens (como diria Miguel Arrojo) mas também na identificação de seus papéis. O que lhes traz uma enorme insatisfação, como uma grande sensação de incompetência.
E para tentar achar resposta para maior de todas as tragédias, o baixo desempenho escolar e as grandes deficiências no processo de alfabetização. A rotulação dos alunos veio preencher um vazio e dar respostas prontas à sociedade.
Alunos como eu, que eram um problema à ordem da sala, apesar de corresponder de forma plena às expectativas de aprendizado, passam a ser o sonho distante na cabeça confusa dessas professoras em desespero.
A escola recebe agora crianças provenientes da crise de uma das mais sólidas e respeitosas instituições sociais, a família, e põe em questão as capacidades e as verdadeiras atribuições de outra instituição, a escola. Estas crianças que antes não eram um problema para a escola, pois ingressavam em número pequeno e permaneciam em número menor ainda, são considerados agora, pelas suas dificuldades de aprendizado e de “adestração”, doentes, tem CID-10 e até medicação farmacológica (Ritalina).
Uma a uma justificadas e compreendidas em suas deficiências e “incluídas” na escola são excluídas da sociedade e incapazes de exercerem seu direito à cidadania. Não lê porque é autista, não escreve porque é dísgrafo, não calcula porque é discalculista e não aprende nada porque é dislexo. No entanto, se lê, se escreve, domina as quatro operações, mas não se senta, não respeita as atividades e se agride e desafiam os educadores, é hiperativo.
E desta forma, os governos vão justificando sua omissão às responsabilidades, e as professoras vão adiando de forma paliativa o encontro com a maior e a mais terrível das verdades, não foram academicamente preparadas para essa realidade docente.
Enquanto isso, as salas de aula tomaram áres de laboratórios, e os estudantes viram “pequenos ratinhos” em uma atuação experimental caracterizada por uma sequêncial prática de tentativa e erro permeada de equívocos quase irreparáveis. E o pior sobre o discurso político da inclusão e da inovação.
A escola agora tem rampas e elevadores, mas o aluno cadeirante não é visto com dignidade. Se não aprende a ler, ou a escrever, ainda sim tem a promoção garantida e certificação ao final do nono ano. Por que a escola é inclusiva, e ele não sabe lê porque é deficiente.
Porque esse aluno não é visto como um sujeito de direitos dotado de capacidades? Porque uma incapacidade acaba por anular, através do olhar do outro suas tantas outras capacidades?
A escola dita inclusiva deveria ser preparada para a aceitação das deficiências e descoberta e valorização de outras tantas eficiências.
A total falta de preparo das instituições públicas de educação para as políticas de reconhecimento dos direitos da igualdade entre os diferentes, pode ser claramente percebida em frases do tipo:
__ A inclusão é boa, porque ensina as crianças a conviver com o diferente.
Desta forma, o síndrome de down e o chamado PC, se inserem nesse espaço não para serem preparados e formados em suas capacidades, respeitando seus tempos e limitações, de forma a garantir sua autonomia e a descoberta de sua identidade, mas para ensinar os colegas o que é tolerância” e socializar.
Isso é criminoso, sob o discurso da socialização como principal finalidade da educação, estamos (de) formando cidadãos do futuro. Que certamente precisarão de políticas de inclusão e cotas para ingressarem no mercado de trabalho e levarem uma vida digna.
Outro dia escutei na sala dos professores, uma professora exausta e frustrada desabafando com os colegas:
__ Acho que minha turma é toda de inclusão, tenho vinte e dois alunos com nove e dez anos que não aprendem a ler, alguns ainda estão na fase pré-silábica e outros nem isso.
Surpreendentemente, uma outra professora diz:
__ Na minha sala só tem uma aluna de inclusão.
As outras presentes ficaram surpresas e quase invejosas.
__ Como assim?
E então ela completa:
__ Só uma é capaz de ler, escrever, interpretar e executar as quatro operações. No entanto, o restante da sala está tão lento na evolução desse processo, que quem está excluída e deve ser incluída é ela.
Parece piada, mas é fato. Por que não a mudam de sala? Por que em qualquer outra sala daquela realidade, ela continuaria a ser uma exceção.
Mas será que todas as s crianças desta década estão de fato doentes? Ou só as crianças pobres de periferia? Não seria mais correto tentar resolver as causas do problema do que simplesmente nomeá-lo, classificá-lo e justificá-lo?
Pelo modo como as coisas estão andando, não demora muito e surgirão outras doenças responsáveis pela ineficiência escolar. O transtorno dos pais separados, o transtorno do pai na cadeia, o transtorno da alta rotatividade matrimonial da mãe, o transtorno da falta de limites.
Sendo assim, pobre vai ter CID-10, e seu direito à educação será oficialmente, substituído pelo direito à socialização.
Para encerrar meu desabafo gostaria de relatar uma experiência escolar que ilustra bem como as políticas de inclusão são percebidas pelos seus principais interessados, as crianças e os professores:

Havia em uma determinada escola uma sala de aula composta com crianças de sete a oito anos vivenciando o processo de alfabetização. A professora da turma, era conhecida por ser a mais rígida da escola, e manter uma sala organizada, disciplinada e com total sucesso na alfabetização.
Claro que ela não pegava qualquer turma. Por ter muitos anos de atuação docente na escola, tinha o privilégio de ser a primeira a escolher a turma, e claro, pegou a “melhor”.
Já nos primeiros dois meses de aula a professora chegou a conclusão que por melhor que fosse a turma esta jamais seria aquela s do início de sua docência. Mas logo tratou de arrumar estratégias para disciplinar e organizara turma, e manter sua boa fama de professora padrão.
Usando de todos os métodos, de Piaget a Pinochet, aos poucos uma a uma das crianças, pelo amor ou pela dor, foram se condicionando à rígida organização da professora. Todos, menos um, o Lucas.
O Lucas só escrevia se estivesse em pé andando pela sala, falava junto a professora, colocava apelidos, fazia piadas, seu caderno era sujo e desorganizado, só fazia as atividades que queria, e o pior, era sujinho, “feinho” e tinha um arsenal de palavrões e mal-criações prontas a disparar sobre a professora, quando se sentia contrariado ou ignorado.
Definitivamente o Lucas era um desafio, mais que isso, um inferno astral para a professora. Não funcionou Piaget, Lacan, Freud, Jesus Cristo, Pinochet nunca foi tão humilhado. Chega, após muitas brigas, conflitos e caixas de “Rivotriu”, o mais sensato era jogar a toalha, admitir que não conseguia e passar a batata quente para alguma novata contratada. O raciocínio não era egoísta, era óbvio, um aluno-problema a mais, outro a menos em uma sala cheia deles não fazia a menor diferença, além do mais, a idéia era preservar os demais alunos da classe que estavam sendo prejudicados por ele.
Vestida deste discurso, a professora foi procurar a pedagoga lhe comunicar o problema e imediatamente a solução.
Inútil, não houve argumentos que convencesse a pedagoga já decidida a trocar alguns alunos daquela sala, por uns mais agitados, pois a outra professora estava muito sobrecarregada.
A professora quase teve um AVC, não conseguindo convencer a pedagoga com argumentos pedagógicos apelou para a chantagem emociona, explicou a situação de sua saúde, sacou uma receita médica da bolsa, mostrou resultados de sua última endoscopia e afirmou estar mal do coração.
Depois começou a relembrar cada um dos vinte e cinco anos der trabalho naquela escola, das turmas que assumiu quando era novata, e da consideração que esperava por parte da escola no ano de se aposentar.
Com o homérico, após tanta dedicação, e os inúmeros apelos por compaixão, conseguiu ficar livre da troca, mas do Lucas não poderia se livrar.
Como explicar aquela incompetência, um aluno que além de tudo não se alfabetizava no mesmo ritmo da turma e ainda desafiava sua autoridade perante os outros. O recurso era aguentar, se estressar menos, dar a ele atividades que o distraísse, gravuras para colorir, papel para picotar, e deixá-lo ali, distraindo-se e dando sossego a ela e para a sala. Afinal era o seu último ano, estavam em abril, logo chegariam a s férias de julho, semana das crianças e... Férias de dezembro. Não seria assim tão difícil.
E assim fez, o Lucas passou a ter permissão a beber água e ir ao banheiro quando quisesse, virou também o ajudante da professora, era um primor em levar recados, buscar material, descobrir para a sala a merenda do dia, cortar folha, apagar o quadro e claro, colorir, e desenhar freneticamente.
Uma das alunas muito revoltada com aquela estranha situação privilegiada do garoto, enquanto todos os outros tinham horário estipulados para ir ao banheiro e ao bebedouro e cansativas atividades de leitura e escrita. Resolveu questionar a professora.
Já preparada para um momento que sabia ser inevitável, a professora chama a garota em um canto e quase em sussurros explica:
__ Paulinha minha querida, você conhece o Rafael da sala dois?
__ Sim, aquele menino que é down?
__ Exatamente, você acha que ele tem as mesmas condições dos outros de aprender as coisas, de se comportar direito?
__ Então, o Rafael é um aluno de inclusão, vem para a escola para socializar e ensinar os coleguinhas a conviver com as diferenças. O Lucas é mais ou menos assim, parece ser normal, mas não é, é um aluno de inclusão, não tem as mesmas capacidades que os outros e vocês precisam tern pena e entender.
A garota não entendeu toda a fala, mas no recreio tratou de repassar a explicação aos colegas, meio aos sussurros e até um pouco de compaixão.
E assim, como se fosse um “carta branca”, sabe?
Todos sabiam, em uma brincadeira infantil o que era “carta branca” geralmente era aquela criança que por ser menor ou considerada fraquinha era aceita no jogo, por pena, ou por insistência dos pais, mas não podia ser queimado, achado, eliminado ou qualquer outra coisa que causasse perca de ponto para um dos times em determinadas brincadeiras.
Resumindo, ele acha que está brincando, os pais acham que ele está sendo entrosado ao grupo, e os demais sabem que o título de competição, ele nem existe.
__Carta branca, assim eu também quero...
Outros resmungam.
__Mais eu não entendi, a professora falou que ele é tipo Rafael da sala 2? Perguntou outro.
__ É tipo, mas não é igual. É meio retardado eu acho. Deduziu o outro.
Acabou o recreio, os alunos voltaram para a sala, depois daquela revelação a sala jamais seria a mesma, e o Lucas jamais seria visto da mesma forma que era, até dez minutos atrás. Os sentimentos se dividiam, e os olhares se multiplicavam. Uns olhavam com pena, outros com inveja, alguns nem ligavam, agiram com indiferença, e outras se sentiram injustificados.
Um deles, querendo compartilhar o privilégio, deu-se a levantar da carteira, disse que não ia fazer as atividades, e que ia ficar desenhando.
A professora estranhou o comportamento e de forma severa perguntou o motivo daquilo.
E o garoto que não aguentava segurar soltou:
__ Ah! Professora todo mundo tem que ficar quieto e fazer atividade, só esse menino faz o que quer.
__ Uma das alunas se adiantando a professora e diz em tom repreensivo:
__ Você não sabe que ele é retardado?
E a Paulinha, informadíssima e escalada na cartilha lulista do politicamente correto, corrige:
__ Não é retardado que fala não, sua anta, é inclusão.

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